Um olhar verde sobre a química
Cada profissional tem uma maneira própria de olhar para um
determinado tema. Ao “olharem” para a água, os químicos
focalizam as suas propriedades como solvente e reagente; os
biólogos, por sua vez, se interessam pela contaminação
microbiológica, enquanto os geólogos estudam as bacias
hidrográficas e os ambientalistas se preocupam com os níveis de
poluentes nela presentes. Também os políticos têm sua forma de
“olhar” para a água. Discute-se, atualmente, a viabilidade da
transposição do Rio São Francisco, num projeto que exemplifica
uma preocupação de todo governante, seja municipal ou estadual:
garantir o abastecimento de água para toda a população.
Há aproximadamente dez anos, profissionais da Química que atuam
na indústria, na pesquisa e também na área de ensino começaram a
ter uma visão diferente sobre produtos e processos químicos, de
modo a contemplar aspectos que levassem em conta a saúde humana
e o meio ambiente. Na verdade, os profissionais da indústria
química têm tido tal preocupação há muito mais tempo.
Essa nova maneira de olhar a Química foi denominada “Química
Verde” e tem como base 12 princípios como, por exemplo, aqueles
que propõem o emprego de processos químicos que requeiram
condições brandas de operação (tais como temperaturas e pressões
moderadas), com a finalidade de reduzir custos com energia e
riscos de acidentes.
Tendo em vista o quadro de diminuição das reservas globais de
petróleo, gás natural e carvão, bem como o efeito nocivo dos
gases provenientes dessas fontes para o meio ambiente (efeito
estufa e chuva ácida), a Química Verde propõe a busca por fontes
renováveis, tanto para gerar energia quanto para servir de
matéria-prima industrial. Neste último caso, basta lembrar que,
hoje, a maioria de produtos, dos plásticos aos fármacos de uso
comum, é obtida a partir de derivados do petróleo, uma fonte
fóssil não renovável.
Outros aspectos importantes dessa nova visão para realizar
processos químicos são: (1) a substituição de solventes tóxicos
por outros, como o dióxido de carbono ou a água, em condições
supercríticas; (2) o desenvolvimento de métodos analíticos
sensíveis e seletivos para o monitoramento de substâncias nos
processos de produção, nos organismos vivos e no meio ambiente;
(3) os produtos oriundos dos processos devem ser projetados para
apresentar alto desempenho e serem recicláveis ou de fácil
degradação, a fim de minimizar problemas de descarte e acúmulo
de lixo.
Um dos verbos mais usados atualmente, em qualquer atividade, é
“economizar”. No caso de uma reação química, é possível
introduzir modificações que visam a economizar energia e/ou
átomos e aumentar o rendimento e a seletividade de um processo.
Para ilustrar alguns desses aspectos no contexto da Química
Verde, a síntese do ácido adípico é comentada a seguir. Mais de
2,2 milhões de toneladas dessa substância são produzidos
anualmente no mundo devido à sua importância como reagente para
a produção de poliuretanas (usadas na fabricação de adesivos,
tintas e borrachas), lubrificantes, plastificantes e,
principalmente, náilon-6, uma fibra sintética de grande
importância no nosso dia-a-dia (usada em carpetes, automóveis,
roupas e tapeçaria).
Analisando a síntese convencional do ácido adípico (esquema I),
empregada atualmente em vários processos industriais, pode-se
identificar os sérios problemas responsáveis pelo “impacto
ambiental do náilon”: (1) o reagente ciclohexano é obtido
através da hidrogenação (adição de hidrogênio) do benzeno, que é
um derivado do petróleo altamente tóxico; (2) o agente oxidante,
ácido nítrico concentrado, é corrosivo; (3) o processo envolve
altas temperaturas, várias etapas de síntese, uso de diversos
catalisadores (substâncias que aceleram uma reação química) e de
substâncias tóxicas (como sais de crômio); (4) no final da
reação, há emissão de gases poluentes, que causam destruição da
camada de ozônio (N2O) e o efeito estufa (CO2 e N2O).
Uma rota alternativa para obtenção do ácido adípico (esquema II)
foi proposta pelo grupo de Ryoji Noyori, da Universidade de
Nagoya (Japão), em 1998, visando atender a alguns princípios da
Química Verde. A síntese alternativa, um método direto e
“limpo”, apresenta vantagens tais como: (1) menor gasto de
energia com o uso de temperatura moderada; (2) redução do tempo
total de reação – uma só etapa; (3) economia de átomos e maior
rendimento; (4) uso de pequena quantidade de catalisador e de um
agente oxidante menos agressivo; (5) geração de água (subproduto
atóxico). Apesar do peróxido de hidrogênio (um líquido viscoso
com densidade maior que a da água) ser um oxidante adequado aos
princípios da Química Verde, uma vez que seu produto de reação é
a água, seu preço no mercado ainda é alto, o que inviabiliza, no
momento, a implantação do processo em escala industrial.
Os estudos envolvendo a síntese do ácido adípico não cessam. Há
relatos de trabalhos tentando utilizar, como oxidantes, o
oxigênio molecular ou o ar (reagente de baixo custo),
catalisadores heterogêneos e fontes renováveis de matéria-prima
(como o açúcar).
Os princípios da Química Verde pautam-se no bom senso, de modo
que vários governos, empresas, pesquisadores e professores já
estão mudando o foco e usando lentes verdes em suas atividades e
projetos. Mas para que os objetivos sejam atingidos não bastam o
conhecimento químico básico e o trabalho de profissionais
competentes e criativos. É preciso que haja recursos financeiros
para atividades de pesquisa científica e inovação tecnológica,
além de incentivos governamentais para empresas, legislação e
fiscalização adequadas, educação ambiental e outros requisitos.
É possível que, em um futuro próximo, se possa usar uma jaqueta
de náilon tecida com fibras oriundas do processo verde.
Os textos e sites sugeridos a seguir tratam mais detalhadamente
da Química Verde e abordam casos interessantes de mudanças que
vêm ocorrendo em indústrias e universidades que se propuseram a
“esverdear” suas atividades:
- M. Lancaster, “Green Chemistry:
an introductory text”, Royal Society of Chemistry, 2002.
- K. Sato, M. Aoki, R. Noyori, A
“Green” Route to Adipic Acid: Direct Oxidation of Cyclohexenes
with 30 Percent Hydrogen Peroxide, Science, 281 (1998) 1646.
- Y. Deng, Z. Ma, K. Wang, J. Chen,
Clean synthesis of adipic acid by direct oxidation of
cyclohexene with H2O2 over peroxytungstate–organic complex
catalysts, Green Chemistry, (1999) 275.
-
http://www.ufpel.tche.br/iqg/wwverde
-
http//www.acs.org
Vera R. Leopoldo Constantino e
Denise de Oliveira Silva
Instituto de Química da USP